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M978a. Melo Neto, J. C. (1978). Antologia Poética





1 ‘as palavras de pedra ulceram a boca / e no idioma pedra se fala doloroso’.

2 ‘no caixão, meio caixão meio pedestal / o morto mais se inaugura do que morre’

3 (sobre o sentar, estar-no-mundo): ‘ondequer que certos homens se sentem / sentam poltrona, qualquer o assento. / (...) / Ondequer que certos homens se sentem / sentam bancos ferrenhos, de colégio / (...) / a vida toda, se sentam mal sentados, / e mesmo de pé algum assento os fere’

4 ‘Esses rios do sertão falam tão claro / que induz ao suicídio a pressa deles / para fugir da morte da vida em poças / que pega quem devagar por tanta sede’

5 Com seu vazio em riste

6 Não se quer deserto, reage a dentes



7 O mais prático dos sóis, / o sol de um comprimido de aspirina: / de emprego fácil, portátil e barato, / compacto de sol na lápide sucinta

8 O ovo de galinha, p. 50: ‘I / Ao olho mostra a integridade / de uma coisa num bloco, um ovo. / Numa só matéria, unitária, / maciçamente ovo, num todo. / Sem possuir um dentro e um fora, / tal como as pedras, sem miolo: / é só miolo: o dentro e o fora / integralmente no contorno. / No entanto, se ao olho se mostra / unânime em si mesmo, um ovo, / a mão que o sopesa descobre / que nele há algo suspeitoso: / que seu peso não é o das pedras, / inanimado, frio, goro; / que o seu é um peso morno, túmido, / um peso que é vivo e não morto. / II / O ovo revela o acabamento / a toda mão que o acaricia, / daquelas coisas torneadas / num trabalho de toda a vida. / E que se encontra também noutras / que entretanto mão não fabrica: / nos corais, nos seixos rolados / e em tantas coisas esculpidas / cujas formas simples são obra / de mil inacabáveis lixas / usadas por mãos escultoras / escondidas na água, na brisa. / No entretanto, o ovo, e apesar / de pura forma concluída, / não se situa no final: / está no ponto de partida. / III / A presença de qualquer ovo, / até se a mão não lhe faz nada, / possui o dom de provocar / certa reserva em qualquer sala. / O que é difícil de entender / se se pensa na forma clara / que tem um ovo, e na franqueza / de sua parede caiada. / A reserva que um ovo inspira / é de espécie bastante rara: / é a que se sente ante um revólver / e não se sente ante uma bala. / É a que se sente ante essas coisas / que conservando outras guardadas / ameaçam mais com disparar / do que com a coisa que disparam. / IV / Na manipulação de um ovo / um ritual sempre se observa: / há um jeito recolhido e meio / religioso em quem o leva. / Se pode pretender que o jeito / de quem qualquer ovo carrega / vem da atenção normal de quem / conduz uma coisa repleta. / O ovo porém está fechado / em sua arquitetura hermética / e quem o carrega, sabendo-o, / prossegue na atitude regra: / procede ainda da maneira / entre medrosa e circunspeta, / quase beata, de quem tem / nas mãos a chama de uma vela’.

9 Em coro, feito as lavadeiras, / lá estão na água de canto, / alma e roupa lavando.

10 Eis os pais de nosso barroco, / de ventre solene mas oco / e gesto pomposo e redondo / na véspera mesma do escombro

11 A palavra seda, p. 108: ‘A atmosfera que te envolve / atinge tais atmosferas / que transforma muitas coisas / que te concernem, ou cercam. / E como as coisas, palavras / impossíveis de poema: / exemplo, a palavra ouro, / e até este poema, seda. / É certo que tua pessoa / não faz dormir, mas desperta; / nem é sedante, palavra / derivada da de seda. / E é certo que a superfície / de tua pessoa externa, / de tua pele e de tudo / isso que em ti se tateia, / nada tem da superfície / luxuosa, falsa, acadêmica, / de uma superfície quando / se diz que ela é “como seda”. / Mas em ti, em algum ponto, / talvez fora de ti mesma, / talvez mesmo no ambiente / que retesas quando chegas, / há algo de muscular, / de animal, carnal, pantera, / de felino, da substância / felina, ou sua maneira, / de animal, de animalmente, / de cru, de cruel, de crueza, que sob a palavra gasta / persiste na coisa seda’.

12 Poemas da cabra, p.115: ‘Nas margens do Mediterrâneo / não se vê um palmo de terra / que a terra tivesse esquecido / de fazer converter em pedra. / / Nas margens do Mediterrâneo / Não se vê um palmo de pedra / que a pedra tivesse esquecido / de ocupar com sua fera. / / Ali, onde nenhuma linha / pode lembrar, porque mais doce, / o que até chega a parecer / suave serra de uma foice, / / não se vê um palmo de terra / por mais pedra ou fera que seja, / que a cabra não tenha ocupado / com sua planta fibrosa e negra. / 1 / A cabra é negra. Mas seu negro / não é o negro do ébano douto / (que é quase azul) ou o negro rico / do jacarandá (mais bem roxo). / / O negro da cabra é o negro / do preto, do pobre, do pouco. / Negro da poeira, que é cinzento. / Negro da ferrugem, que é fosco. / / Negro do feio, às vezes branco. / Ou o negro do pardo, que é pardo. / disso que não chega a ter cor / ou perdeu toda cor no gasto. / / É o negro da segunda classe. / Do inferior (que é sempre opaco). / Disso que não pode ter cor / porque em negro sai mais barato. / 2 / Se o negro quer dizer noturno / o negro da cabra é solar. / Não é o da cabra o negro noite. / É o negro de sol. Luminar. / / Será o negro do queimado / mais que o negro da escuridão. / Negra é do sol que acumulou. / É o negro mais bem do carvão. / / Não é o negro do macabro. / Negro funeral. Nem do luto. / Tampouco é o negro do mistério, / de braços cruzados, eunuco. / / É mesmo o negro do carvão. / O negro da hulha. Do coque. / Negro que pode haver na pólvora: / negro de vida, não de morte. / 3 / O negro da cabra é o negro / da natureza dela cabra. / Mesmo dessa que não é negra, / como a do Moxotó, que é clara. / / O negro é o duro que há no fundo / da cabra. De seu natural. / Tal no fundo da terra há pedra, / no fundo da pedra, metal. / / O negro é o duro que há no fundo / da natureza sem orvalho / que é a da cabra, esse animal / sem folhas, só raiz e talo, / / que é a da cabra, esse animal / de alma-caroço, de alma córnea, / sem moelas, úmidos, lábios, / pão sem miolo, apenas côdea. / 4 / Quem já encontrou uma cabra / que tivesse ritmos domésticos? / O grosso derrame do porco, / da vaca, do sono e de tédio? / / Quem encontrou cabra que fosse / animal de sociedade? / Tal o cão, o gato, o cavalo, / diletos do homem e da arte? / / A cabra guarda todo o arisco, / rebelde, do animal selvagem, / viva demais que é para ser / animal dos de luxo ou pajem. / / Viva demais para não ser, / quando colaboracionista, / o reduzido irredutível, / o inconformado conformista. / 5 / A cabra é o melhor instrumento / de verrumar a terra magra. / Por dentro da serra e da seca / não chega onde chega a cabra. / / Se a serra é terra, a cabra é pedra. / Se a serra é pedra, é pedernal. / Sua boca é sempre mais dura / que a serra, não importa qual. / / A cabra tem o dente frio, / a insolência do que mastiga. / Por isso o homem vive da cabra / mas sempre a vê como inimiga. / / Por isso quem vive da cabra / e não é capaz do seu braço / desconfia sempre da cabra: / diz que tem parte com o Diabo. / 6 / Não é pelo vício da pedra, / por preferir a pedra à folha. / É que a cabra é expulsa do verde, / trancada do lado de fora. / / A cabra é trancada por dentro. / Condenada à caatinga seca. / Liberta, no vasto sem nada, / proibida, na verdura estreita. / / Leva no pescoço uma canga / que a impede de furar as cercas. / Leva os muros do próprio cárcere: / prisioneira e carcereira. / / Liberdade de fome e sede / da ambulante prisioneira. / Não é que ela busque o difícil: / é que a sabem capaz de pedra. / 7 / A vida da cabra não deixa / lazer para ser fina ou lírica / (tal o urubu, que em doces linhas / voa à procura da carniça). / / Vive a cabra contra a pendente, / sem os êxtases das decidas. / Viver para a cabra não é / re-ruminar-se introspectiva. / / É, literalmente, cavar / a vida sob a superfície, / que a cabra, proibida de folhas, / tem de desentranhar raízes. / / Eis porque é a cabra grosseira, / de mãos ásperas, realista. / Eis porque, mesmo ruminando, / não é jamais contemplativa. / 8 / O núcleo de cabra é visível / por debaixo de muitas coisas. / Com a natureza da cabra / outras aprendem sua crosta. / / Um núcleo de cabra é visível / em certos atributos roucos / que têm as coisas obrigadas / a fazer de seu corpo couro. / / A fazer de seu couro sola, / a armar-se em couraças, escamas: / como se dá com certas coisas / e muitas condições humanas. / / Os jumentos são animais / que muito aprenderam com a cabra. / O nordestino, convivendo-a, / fez-se de sua mesma casta. / 9 / O núcleo de cabra é visível / debaixo do homem do Nordeste. / Da cabra lhe vem o escarpado / e o estofo nervudo que o enche. / / Se adivinha o núcleo de cabra / no jeito de existir, Cardozo, / que reponta sob seu gesto / como esqueleto sob o corpo. / / E é outra ossatura mais forte / que o esqueleto comum, de todos; / debaixo do próprio esqueleto, / no fundo centro de seus ossos. / / A cabra deu ao nordestino / esse esqueleto mais de dentro: / o aço do osso, que resiste / quando o osso perde seu cimento. / * / O Mediterrâneo é mar clássico, / com águas de mármore azul. / Em nada me lembra das águas / sem marca do rio Pajeú. / / As ondas do Mediterrâneo / estão no mármore traçadas. / Nos rios do Sertão, se existe, / a água corre despenteada. / / As margens do Mediterrâneo / parecem deserto balcão. / Deserto, mas de terras nobres / não da piçarra do Sertão. / / Mas não minto o Mediterrâneo / nem sua atmosfera maior / descrevendo-lhe as cabras negras / em termos da do Moxotó.

13 Imitação das águas, p. 122: ‘De flanco sobre o lençol, / paisagem já tão marinha, / a uma onda adeitada, / na praia, te parecias / Uma onda que parava / ou melhor: que se continha; / que contivesse um momento / seu rumor de folhas líquidas / Uma onda que parava / naquela hora precisa / em que a pálpebra da onda / cai sobre a própria pupila / Uma onda que parava / ao dobrar-se, interrompida, / que imóvel se interrompesse / no alto de sua crista / e se fizesse montanha / (por horizontal e fixa), / mas que ao se fazer montanha / continuasse água ainda. / Uma onda que guardasse / na praia cama, finita, / a natureza sem fim / do mar de que participa, / e em sua imobilidade, / que precária se adivinha, / o dom de se derramar / que as águas faz femininas / mais o clima de águas fundas, / a intimidade sombria / e certo abraçar completo / que dos líquidos copias’.

14 Uma faca só lâmina, p. 131: ‘Assim como uma bala / enterrada no corpo, / fazendo mais espesso / um dos lados do morto; / assim como uma bala / do chumbo pesado, / no músculo de um homem / pesando-o mais de um lado / qual bala que tivesse / um vivo mecanismo, / bala que possuísse / um coração ativo / igual ao de um relógio / submerso em algum corpo, / ao de um relógio vivo / e também revoltoso, / relógio que tivesse / o gume de uma faca / e toda a impiedade / de lâmina azulada; / assim como uma faca / que sem bolso ou bainha / se transformasse em parte / de vossa anatomia; / qual uma faca íntima / ou faca de uso interno, / habitando num corpo / como o próprio esqueleto / de um homem que o tivesse, / e sempre, doloroso, / de homem que se ferisse / contra seus próprios ossos’.

15 ‘por fim à realidade, / prima, e tão violenta / que ao tentar apreendê-la / toda imagem rebenta’

16 cemitério pernambucano: ‘para que todo esse muro? / por que isolar essas tumbas / do outro ossário mais geral / que é a paisagem defunta?’

17 ‘Tem alfinetes nas veias / que nas veias se atropelam, / tem mantas de carne viva / cobrindo sua alma inteira’.

18 cemitério pernambucano, p. 160: ‘É cemitério marinho / mas marinho de outro mar. / Foi aberto para os mortos / que afoga o canavial. / / As covas no chão parecem / as ondas de qualquer mar, / mesmo as de cana, lá fora, / lambendo os muros de cal. / / Pois que os carneiros de terra / parecem ondas de mar, / não levam nomes: uma onda / onde se viu batizar? / / Também marinho: porque / as caídas cruzes que há / são menos cruzes que mastros / quando a meio naufragar’.

19 Viver / é ir entre o que vive.

20 ‘como é mais espesso / o sangue de um homem / do que o sonho de um homem’.

21 ‘O descuido ficara aberto / de par em par; / um sonho passou, deixando / fiapos,’

22 ‘Cultivar o deserto / como um pomar às avessas: / então, nada mais / destila, evapora, / onde foi maçã, resta uma fome; / onde foi palavra / (potros ou touros, contidos) resta a severa / forma do vazio’.

23 ‘Venha, mais fácil e / portátil na memória, / o poema, flor no / colete da lembrança’

24 ‘a noite inteira o poeta / em sua mesa, tentando / salvar da morte os monstros / germinados em seu tinteiro’

25 ‘não há guarda-chuva / contra o amor / que mastiga e cospe como qualquer boca, / que tritura como um desastre / (...) / não há guarda-chuva / contra o tempo / rio fluindo sob a casa, correnteza / carregando os dias, os cabelos’

ENCYCLOPAEDIA V. 51-0 (11/04/2016, 10h24m.), com 2567 verbetes e 2173 imagens.
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